Lisboa, cidade triste e alegre – Retratando o espírito de uma época.

Introdução
Nesse ensaio, analisaremos o livro de fotografias Lisboa, cidade triste e alegre de autoria coletiva da dupla Victor Palla e Costa Martins. Nosso interesse nessa obra parte da curiosidade de entender as características que a fizeram ser considerada um dos livros de fotografia mais importantes já feitos em Portugal e um dos mais apaixonados retratos sobre Lisboa. Começaremos comentando o contexto em que esse livro foi publicado e faremos uma breve apresentação dos seus autores para, a partir disso, pensarmos sobre a obra que publicaram: suas imagens, o layout, a diagramação das imagens, as aproximações com o cinema, a maneira como a dupla conjugou suas imagens com poesias de autores consagrados e como concatenaram tudo isso em um livro.
O contexto histórico é importante, pois nos ajudará a perceber porque esse retrato lírico e imagético de Lisboa precisou aguardar quase meio século para ter a sua importância reconhecida. O ensaio terá como base as pesquisas já realizadas por outros autores, livros publicados sobre fotografia de Portugal, entrevistas de Palla sobre a obra e nas diversas matérias que foram publicadas quando finalmente o livro foi reeditado.

Além disso, refletiremos sobre as iniciativas que fotógrafos contemporâneos estão experimentando para construir retratos relevantes da sociedade atual. Veremos os problemas que os fotógrafos contemporâneos encontraram ao tentar dar voz ao presente utilizando os meios tecnológicos a sua disposição e traçaremos um paralelo com a empreitada realizada pela dupla Palla e Martins para materializarem Lisboa ( Lisboa em itálico será como iremos nos referir a obra assunto desse ensaio a partir de agora).
Contexto de Lisboa

O contexto politico em Portugal no pós-guerra não era dos melhores para os artistas que comemoraram a vitória da democracia sobre as ditaduras nazista e fascista. Após a guerra, a prioridade das democracias ocidentais não era acabar com as outras ditaduras, mas sim, conter o avanço da União Soviética. Por isso, naquele momento, era conveniente para as democracias encontrarem virtudes e até ajudar a manutenção do regime de Salazar. Dessa forma o regime português conseguiu se manter firme durante o ressurgimento da oposição e, conforme os seus vizinhos iam se recuperando, foi capaz de se colocar e crescer junto com as democracias europeias.
Na época que Lisboa foi publicado, Portugal passava por um período favorável, com a Europa recuperada, a industrialização cresceu 8% ao ano (Ramos, 2009, p. 674). A mão pesada da censura continuava cerceando as atividades artísticas que fossem dissidentes do discurso oficial, nessa época, exposições eram fechadas antes mesmo da abertura, obras eram apreendidas, artistas eram exonerados de instituições onde lecionavam. A arbitrariedade, componente de regimes totalitários, era bastante presente. Algumas leis curiosas eram sancionadas, como a que proibia importação de filmes dublados em português, uma vez que era muito mais fácil editar as legendas, traduzindo de forma a evitar temas subversivos, do que editar o áudio.
Muitos artistas portugueses, cansados da repressão do regime, acabaram emigrando da sua terra natal. Escapando do sufocamento e da falta de oportunidades para sobreviver do seu trabalho sob o regime. Enquanto no resto da Europa democrática, os países já sofriam a ressaca do Plano Marshall, aonde o dinheiro norte-americano veio atrelado ao american way of life e, consequentemente, o capitalismo feroz.
A dupla Palla e Martins
E essa foi a época que a dupla Victor Palla e Costa Martins perambularam por Lisboa, capturando com suas câmeras um retrato humano de quem vivia na cidade, se distanciando dos cartões postais para chegar mais perto do que realmente era Lisboa, em um movimento que podemos relacionar com o que Cézanne fazia em seus quadros, onde o pintor luta contra os clichés para encontrar uma semelhança mais profunda do que a pura e simples representação fiel (Deleuze, 1981/2011), dando visibilidade pro que realmente importa, no caso da obra da dupla, os habitantes de Lisboa.
Victor Palla nasceu em 1922 e foi iniciado cedo na fotografia. Seu pai era fotógrafo amador e o jovem Palla cresceu ajudando o pai nessa empreitada ”Comecei antes de saber ler. O meu pai era do teatro, mas era também fotógrafo amador, fazia e revelava as fotografias lá por casa. Com três ou quatro anos, eu ia para o laboratório dele, achava muita graça e ajudava-o” (Gomes, 1999). Além da fotografia, Palla era arquiteto, pintor, ceramista, designer gráfico, editor, tradutor, galerista e uma figura presente em diversas iniciativas culturais (Pomar, 2009). Participou com os seus trabalhos em diversas exposições, expondo ao lado de artistas importantes como Fernando Lanhas, Júlio Resende e Júlio Pomar.
A partir da década de 50, começa também a se dedicar a arquitetura tendo atuação relevante na modernização de Lisboa, como o Restaurante Galeto que visitamos recentemente e experimentamos a atemporalidade do balcão desenhado por Palla. No design gráfico mostra o seu talento visual criando capas para diversos livros e em 1952 fez um curso de Publicação e Produção de Livros em Londres. Sua atuação como designer gráfico foi contemplada em 2011 por um livro da coleção D. Essa visão e criatividade ficam evidentes quando analisarmos o assunto desse ensaio mais a frente.
Também nascido em 1922, Costa Martins foi colega de Palla na faculdade de arquitetura. Martins consegue um emprego assim que saiu do curso como arquiteto projetista no Ministério das Obras públicas e foi responsável por alguns edifícios de habitação social em Olivais. Seu interesse por fotografia o levou a interromper durante dois anos a atividade de arquiteto para, junto com Victor Palla, trabalharem nesse projeto de fotografar Lisboa dia e noite, só voltando a casa para revelar os negativos (Marques, 2008).
Segundo Palla, a ideia do livro surgiu em um almoço com Martins onde falavam sobre fotografia “Bill Brandt, na Picture Post; A Life (na sua melhor época); Cartier Bresson, Os Capa, Klein, a Magnum, não podiam deixar de vir a baila.” (Palla. Apud. Pomar, 2010) e conversaram sobre a possibilidade de fazer um livro sobre Lisboa, em moldes mais livres e humanistas como as referências das quais conversaram, diferente da estética de salon, isto é, cenas da natureza e postais da cidade nos seus melhores ângulos – o tipo de fotografia que era feita na época pelos fotógrafos portugueses visando ganhar os prêmios dos salões de fotografia.
Os salões de fotografia eram públicos e, consequentemente, vigiados pela censura. Uma fotografia mostrando algo que não fosse do interesse do regime, por melhor que fosse, teria poucas chances de ser premiada. Basta lembrarmos o episódio que aconteceu em 1965 quando a Sociedade Portuguesa de Escritores decide agraciar o livro Luuanda do escritor angolano Luandino Vieira com o Grande Premio da Novelística. Os integrantes do Júri foram acusados de “traição a pátria”, alguns foram detidos enquanto um grupo do PIDE assaltou e destruiu a sede do SPE. O jornal que publicou essa notícia foi suspenso por seis meses (Azevedo, 1990).
Pode ser um exemplo extremo, mas, como pontua Badger no texto para a reedição do livro em 2009, fotografar Alfama nos anos 50 poderia ser considerado um ato de transgressão, pois, diferente do bairro turístico que conhecemos nos dias de hoje, na década de 50, suas ruelas eram palco da miséria, da pobreza, da vida real dos trabalhadores que o regime salazarista preferia que ninguém conhecesse (2009). Uma prova disso são os álbuns oficiais do SNP (Portugal 1934 e Portugal 1940) e as outras iniciativas de divulgação de uma imagem de progresso da nação para a nação e também para o mundo, como a exposição do Mundo Português de 1940. Existe um esforço consciente e constante de que tudo pareça estar indo muito bem.
Lisboa
Em 1958 as primeiras imagens são reveladas ao público lisboeta na Galeria Diário de Notícias em uma montagem arrojada, com percursos e cortes desestruturados no espaço, já preconizando o que veríamos no design do livro. Na sequencia, outra exposição aconteceu no Porto seguindo os mesmos moldes, porém a recepção não foi como esperado, segundo a pesquisa extensa de Marques (2008, p.97) “As ousadias experimentais de Palla/Martins na devolução de um retrato desfocado, recortado, disruptivo, da capital tiveram, no entanto, um reduzido impacto nos seus contemporâneos, passando praticamente despercebidas no provinciano contexto português dos anos 50”.
De quase 6000 negativos produzidos a dupla selecionou cerca de 200 imagens para compor o livro que a dupla estava a cerca de três anos desenvolvendo. Em uma entrevista, Palla nos conta um pouco mais sobre o que os influenciou:
Tínhamos visto um livro do William Klein sobre Nova Iorque e achámos que seria interessante fazer um livro sobre Lisboa. Apesar de gostar muito do livro do Klein, julgo que, globalmente, o nosso livro é diferente, quer do ponto de vista fotográfico, quer gráfico. Teria que ser um livro diferente. Queríamos um livro não comercial, não extraordinário, não pitoresco. Queríamos um livro simples, directo, sobre a vida do povo de Lisboa, procurando retratar aquilo que era singular e que diferenciava Lisboa de todas as outras cidades. (Palla apud Henriques, 2010, p.49)
E de fato Palla e Martins fizeram um livro único, unindo poesias e imagens cativantes e cruas, como num fluxo natural do que viam pela cidade triste e alegre. Seu design ousado com cortes, diferentes tamanhos de páginas, e layout que mais lembra uma montagem cinematográfica e garantem uma experiência estética bem diferente do que acontecia nas publicações do mundo fotográfico do país. Não é a toa que esse livro foi incluído como um dos mais importantes do mundo na coletânea sobre fotolivros organizada pelo fotógrafo Martin Parr e o historiador de imagens Gerry Badger.
Com textos e poesias de personalidades como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e inéditos à época de Eugénio de Andrade e Alexandre O’Neill, o livro ainda conta com um índice, onde a dupla, assinando coletivamente, reflete sobre cada página do trabalho, falando sobre a técnica, local onde a foto foi feita e também sobre as referências que guiaram a escolha das imagens para compor o livro e, é claro, sobre a ideia que ambos tinham sobre Lisboa.
Nas imagens de Palla e Martins, mais importante do que a impressão saudosista de uma Lisboa que não existe mais é o registro de uma Lisboa viva. Os enquadramentos, os flagrantes, as expressões, as vestimenta, as situações, para citar algumas das peças do quebra cabeça que era Lisboa da década de 50. As cenas retratadas e vividas pela dupla captaram o espírito de uma época, da mesma forma como o trabalho de seus contemporâneos como o New York (1955) de William Klein, The europeans (1955) de Cartier Bresson, Love on the Left Bank (1955) de Ed Van der Elsen.
No Livro Lisboa, vemos uma consciente escolha autoral e visionária de duas pessoas que sabiam o que o que estavam fazendo: retratando uma cidade como um “poema gráfico” (nome provisório do livro), de maneira singular e subjetiva. Vale lembrar que ambos, além de terem nascidos em Lisboa, eram arquitetos e atuavam na cidade, isto é, conheciam a cidade como poucos e isso fica evidente no trabalho fotográfico que realizaram.
Suas páginas sangradas em páginas duplas ou recortadas em formatos menores, às vezes impressas em papel amarelo ou com sequências de imagens reproduzidas como filme cinematográfico. As cenas noturnas lembram a atmosfera de uma das obras primas do cinema italiano Noites de Cabiria (Fellini, 1958), lançado no mesmo ano das exposições, dialogando com o de mais relevante acontecia no cinema mundial.
No final do livro, temos o índice que merece um trabalho a parte para analisar os aforismos que a dupla assina coletivamente. Por agora, podemos pontuar o ressurgimento de coletivos fotográficos como um dos fenômenos mais significativos da fotografia contemporânea, onde indivíduos abrem mão de autoria para terem força em grupo, numa busca por maior representatividade no mercado de trabalho ou como troca de saberes na criação conjunta.
Ainda sobre o Lisboa, mesmo tendo sido lançado em fascículos para possibilitar o acesso da obra ao publico e possibilitar a produção da mesma (através de um esquema de assinaturas), segundo Souza “ao contrariar os gostos dominantes, se tornou num fracasso editorial.” (2008). Esse tipo de informação é mais um dado para compormos o retrato da época no qual o livro foi lançado. Curioso é saber que pouquíssimos exemplares da primeira edição ainda podem ser encontrados. Mais raro ainda se tornaram depois da inclusão na lista de mais influentes do mundo (Parr e Badger, 2004) Em maio de 2007, um exemplar em boas condições foi vendido no leilão Christie’s em Londres por aproximadamente 14.000 euros para um colecionador particular norte-americano (Gomes, 2009).
Após essa série de eventos, o livro foi republicado em um esforço de outra dupla de fotógrafos, José Pedro Cortes e André Príncipe, através da editora Pierre von Kleist Editions. A nova edição de 2009, foi feita tentando ser o mais próximo da da primeira, incluindo ainda um suplemento com uma nova introdução de Gerry Badger (2009). Segundo relato da nova dupla, a nova edição deu trabalho pois muito negativos se perderam e o processo gráfico utilizado (rotogravura) na primeira edição foi descontinuado (Gomes, 2009). O resultado foi um sucesso total, rapidamente esgotada e uma nova edição foi feita em 2015.
Em vez de nos alongarmos sobre a nova edição, iremos pensar em sobre o trabalho realizado por Palla e Martins sob o ponto de vista contemporâneo. Isto é, como os fotógrafos estão fazendo hoje em dia para retratar a nossa época de forma relevante como a dupla fez em Lisboa na década de 50?
Retrato de uma época
O Professor Norte-americano Fred Ritchin em uma entrevista para a revista Foam fez uma provocação sobre a fotografia social que ainda é publicada nos dias de hoje:
A fotografia de cunho social que as pessoas praticam é o único caminho que conheço que alcançou seu ponto alto na década de 1930 – se apenas pudéssemos fotografar como Robert Capa, ou Dorothea Lange, ou a Farm Security Administration, teríamos sucesso. Os cineastas não pensam assim, os romancistas não pensam assim, ninguém mais pensa assim. Mas basta você olhar para os vencedores do Barnack Awards para ver que o que consideramos um forte trabalho de documentação social não mudou muito. Robert Capa ainda poderia ganhar o prêmio. Se você olhar para o cinema – Hitchcock, Tarantino e assim por diante – há uma progressão para novas formas de filmar. Se você olhar para romancistas, Hemingway provavelmente não ganharia um prêmio hoje. Mas na fotografia social particularmente sobre questões de importância internacional – os pontos de referência são muitas vezes trabalhos que foram feitos três quartos de século atrás. (Ritchin, 2011, tradução nossa)
O comentário de Ritchin tem a ver com a estética de Salon que, como comentamos aqui, ignorava trabalhos visionários como Lisboa. O Incrível é pensar que essa entrevista foi dada em 2011, isto é, nas ultimas décadas a fotografia digital mudou o mundo: Todos temos uma câmera no bolso e, no entanto, os critérios que os gatekeepers utilizam para colocar um trabalho em evidência, parecem ser os mesmo dinossauros que fizeram o trabalho da dupla Palla e Martins ficar esquecido por décadas. Uma consequência imediata dessa mentalidade persistente seria o fato da dupla não ter publicado outros livros. Isso é uma pena pois quantos outros retratos de Lisboa deixamos e deixaremos de conhecer?
Ainda sobre o comentário de Ritchin, podemos pensar em alguns trabalhos feitos por fotógrafos contemporâneos que, assim como a dupla Palla e Martins fez sobre Lisboa na década de 50, estão criando imagens que retratam a nossa sociedade atual de forma pontual e não convencional.
Rogério Reis – Ninguém é de ninguém
O fotojornalista e artista brasileiro Rogério Reis faz um trabalho nas praias do Rio de Janeiro que dialoga com a dupla lisboeta e com muitos outros fotógrafos que buscavam o flagrante nas ruas. A diferença é que Reis utiliza bolinhas coloridas para não identificar o rosto das pessoas retratadas. Seu trabalho discute a polêmica sobre o direito de imagem de cada individuo e o direito do autor de criar. Salvo raras exceções, hoje em dia, é necessário autorização por escrito de toda e qualquer pessoa que apareça em uma imagem a ser publicada, isto é, caso você não tenha interesse em ter seu livro removido das estantes por uma ordem judicial ou pagar multas. Rogério Reis trabalha há muito anos com fotografia e esse trabalho é um desabafo sobre a dificuldade de continuar registrando o cotidiano da sua cidade. Imagens como os flagrantes furtados das pessoas nas ruas ou as crianças brincando nas primeiras páginas de Lisboa requereriam uma burocracia tão grande que arriscamos dizer que o livro não seria possível de ser feito nos dias atuais. Basta recordar dos 6000 negativos que a dupla fez para deduzirmos o quanto laborioso seria essa empreitada jurídica.
Eu vinha notando na imprensa que toda segunda-feira surgia a mesma foto nos jornais, que só apareciam os guarda-sóis. Estava engessado pela questão do direito de imagem. Então eu quis criar um personagem e virar um paparazzi dos anônimos na praia. Comecei a fazer fotos rápidas, com foco automático, sem a permissão das pessoas. Queria que não percebessem e formassem um conjunto de imagens bem espontâneas. (Reis, 2014).
Ninguém é de ninguém utiliza de forma lúdica e humorística tarjas da censura jornalística em suas imagens para discutir questões sérias ligadas a fotografia, liberdade individual e também retrata a sua época de uma forma muito peculiar: não mostrando para mostrar. Este trabalho foi adquirido integralmente pela Maison Européenne de la Photographie.
Peter Funch – Babel Tales
Babel Tales expande o significado da fotografia documental ao criar uma colagem digital através do processo de registrar fotograficamente o mesmo lugar, da mesma posição 1000 às vezes até 10000 vezes para conseguir uma imagem orquestrada repleta de coincidências e clichés da fotografia de rua (McClelland, 2011). Uma vez que não há encenação e sim um acoplamento digital de coisas que de fato aconteceram naquele local em momentos diferentes, seu trabalho é ao mesmo tempo documental e ficcional.
Da mesma forma que Palla e Martins se utilizaram do corte, das páginas com tamanhos e formatos diferentes, Funch se utiliza dos meios tecnológicos do seu tempo para discutir o cotidiano das pessoas na cidade. Sua proposta nos remete as páginas do livro da dupla quando os mesmos privilegiam atividades corriqueiras da vida em Lisboa como nas páginas dedicadas as pessoas estendendo roupa pela janela (pp. 48-49) ou as páginas onde vemos freiras andando pela cidade (pp. 106 e 107) ou nos diversos retratos de mulheres carregando objetos em cestas em cima da cabeça.
Nas colagens de Babel Tales, a repetição ao extremo das coincidências e a perfeição na qual são confeccionadas as colagens, nos remete ao surrealismo, mas especificamente a um conceito muito explorado pela arte desde que Freud o cunhou que é o Inquietante onde uma coisa pode ser familiar e estranha ao mesmo tempo. A fotografia, por definição, tem esse conceito atrelado a sua condição. Nas fotos de Lisboa, vemos lugares e pessoas conhecidas e desconhecidas ao mesmo tempo, em Babel Tales esse conceito é alavancado ao extremo onde só nos resta contemplar o absurdo.
Michael Wolf – A Series of Unfortunate Events
Em uma proposta radical, Michael Wolf registra flagrantes que encontra enquanto passeia pelas ruas da cidade de Paris através do Google Street View. Um dos projetos polêmicas da gigante da informática é a catalogação das ruas das cidades do mundo através de uma megaoperação com diversos carros equipados com câmeras que capturam 360 graus de onda passam. Essas imagens são processadas e disponibilizadas na internet. Como Reis, os rostos e as placas dos carros nas imagens são preservados através de poderosos algoritmos que encontram e desfocam respeitando a privacidade das pessoas que são flagradas pelas câmeras. Esse projeto da Google gerou muita polêmica quando foi lançado. Mesmo após 10 anos de funcionamento, muitos países ainda não permitiram o mapeamento do seu território.
Em 2009, quando Wolf se muda de Hong Kong para Paris, percebe que a cidade pouco tinha a oferecer para ele fotograficamente. Seus projetos anteriores envolviam registrar o crescimento anormal das cidades chinesas. Paris, basicamente, não se modificou nos últimos 100 anos. Sua ultima mudança foi registrada incansavelmente por Eugène Atget que sobrevivia proporcionando registros fotográficos da cidade para artistas utilizarem em seus trabalhos. Suas fotografias, que na época mal pagavam suas contas, hoje em dia são consideradas como um dos trabalhos fotográficos mais importantes mundo, influenciando gerações de artistas e fotógrafos, como o registro de Lisboa. Ciente disso, Wolf resolveu utilizar as imagens que as câmeras da Google captavam das ruas da cidade em seu trabalho artístico.
O registro indiferente e maquinal que os carros produziam das cenas de rua foram selecionados e apropriados por Wolf após dias inteiros percorrendo a cidade de Paris sem sair de casa. Subvertendo completamente o conceito de fotografia de rua, o trabalho de Wolf consegue flagrantes típicos do que vemos estampados em publicações, algumas imagens até lembram clássicos da fotografia (fig). Ao romper os limites da fotografia como conhecemos e trazer a discussão sobre a vigilância e o que é de fato fotojornalismo, em 2011 A Series of Unfortunate Events recebeu menção honrosa pelo World Press Photo, atraindo a atenção e, como era de se esperar, causando polêmica no mundo da fotografia.
Conclusão
Nesse ensaio vimos o contexto histórico no qual a dupla Palla e Martins publicou o livro Lisboa, apresentamos seus autores, conhecemos um pouco as características que fazem Lisboa um livro único na sua época e ainda hoje. E também falamos sobre a sua recepção na época do lançamento e o ressurgimento após seu valor ser reconhecido por especialistas na área. Depois refletimos sobre como fotógrafos fazem atualmente para retratar a sociedade atual de forma relevante como Lisboa foi a sua época.
Além de falarmos de Lisboa, exploramos de forma paralela a questão do conservadorismo das bancas de salão, isto é, pessoas que exercem o poder de colocar em evidência trabalhos artísticos, os famoso gatekeepers. Pelo percurso que fizemos, esse é um problema não só de Portugal. Aconteceu com a dupla Palla e Martins de forma indireta e quase aconteceu de forma direta com Michael Wolf, quando e-mails, comentários negativos e matérias surgiram criticando a sua menção honrosa pelo premio mais importante de fotojornalismo do mundo.
O nosso interesse em analisar Lisboa vem atrelado a outro livro mencionado pela bíblia dos fotolivros de Parr e Gadger. Da mesma forma que Lisboa é o único livro português mencionado, Silent book (1997), do artista Miguel Rio Branco é o único livro brasileiro mencionado. Esta ultima foi tema de monografia de conclusão de curso de graduação em Cinema na UFF. Por isso o interesse em estudar um pouco a obra portuguesa.
O índice de Lisboa, conforme mencionado no trabalho, merece um estudo a parte. São duas pessoas apaixonadas pela cidade, por fotografia e a narrativa de cumplicidade é contagiante. Sei que evitamos falar no índice, mas fecharemos o trabalho com uma citação que para, quem sabe, aprofundarmos esse estudo em uma dissertação.
Temos insistido em que o ofício de fotógrafo se deve afastar muito do obter “bonitas” provas soladas, pequenos quadros de cavalete auto-suficientes e válidos por si. Hoje tudo tende a separá-lo desse esteticismo de “salon”: o novo idioma da reportagem fotográfica, as grandes revistas ilustradas, os livros documentais ou de “picture-stories”. E o simples facto de uma fotografia se destinar a ser incluída num conjunto, gravada, impressa, vista por milhares de leitores, tem por força de originar características especiais, determinar uma estética, talvez até toda uma filosofia (Palla e Martins, 1959, p. 160)

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